Um bolsonarista ligado à cúpula da extrema-direita norte-americana, seguidor ferrenho de Olavo de Carvalho e próximo de Donald Trump, está no centro das investigações sobre os ataques golpistas que culminaram no 8 de janeiro. Ex-assessor especial para assuntos internacionais de Jair Bolsonaro, Filipe Garcia Martins foi citado em depoimento do tenente-coronel Mauro Cid, que fechou acordo de delação premiada com a Polícia Federal.
O militar do Exército que foi ajudante de ordens de Bolsonaro relatou à PF que o ex-presidente recebeu em mãos de Filipe Martins uma minuta de decreto golpista de convocação de novas eleições, logo após o pleito de outubro do ano passado, vencido pelo presidente Lula. O conteúdo do depoimento foi antecipado pelo colunista Aguirre Talento, do UOL.
Segundo o colunista, Cid contou à PF que Filipe Martins levou para o encontro com Bolsonaro, no fim do ano passado, um advogado constitucionalista e um padre. O tenente-coronel, entretanto, disse não se lembrar dos nomes desses dois personagens.
A PF vai cruzar as informações de Cid com uma série de arquivos encontrados no celular do militar. Eles incluem uma minuta golpista e um roteiro para o golpe de Estado, além de um parecer emitido pelo jurista e advogado Ives Gandra Martins para embasar juridicamente a empreitada criminosa. A análise pode confirmar se foi Gandra quem participou da reunião com Bolsonaro e Filipe Martins.
A notícia do UOL acrescenta que a minuta entregue ao ex-presidente incluía a determinação da prisão de adversários. Outra informação é que, segundo o relato de Cid à PF, Bolsonaro, após receber o documento, consultou militares de alta patente sobre viabilidade de um golpe de Estado.
A PF investiga se a minuta é a mesma que foi encontrada na residência do ex-ministro da Justiça Anderson Torres e que, da mesma forma, também autorizava prisão de adversários.
Ainda conforme o colunista, Mauro Cid afirmou na delação que, durante a reunião de Bolsonaro com os militares, o então comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, foi favorável ao plano golpista. No entanto, não houve adesão do Alto Comando das Forças Armadas.
Aos investigadores, Cid, conforme a notícia, disse ter testemunhado tanto a reunião de Filipe Martins com Bolsonaro quanto a do ex-presidente com militares.
As conexões do ex-assessor
Para se ter noção do peso das novas revelações de Mauro Cid é importante conhecer detalhes da ascensão meteórica de Filipe Martins nos subterrâneos da extrema-direita, dentro e fora do país.
Nascido em Sorocaba e criado em Votorantim, no estado de São Paulo, ele é bacharel em Relações Internacionais. Foi nomeado, em 3 de janeiro de 2019, com apenas 31 anos de idade, assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, após ter atuado com o ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, outro devoto de Olavo de Carvalho, no governo de transição.
Na terra plana bolsonarista, o prestígio de Martins não vinha de experiência ou trabalhos de destaque na área de relações internacionais, mas da desenvoltura com que ele espalhava mentiras e discursos de ódio nas redes sociais.
Por essa razão, seu nome foi incluído entre os investigados no inquérito das fake news, do Supremo Tribunal Federal (STF), por suspeita de pertencer ao chamado “gabinete do ódio”, uma “associação criminosa”, como disse o ministro Alexandre de Moraes, formada por funcionários que utilizavam a estrutura do Planalto para difundir mentiras e ataques a adversários de Jair Bolsonaro.
A inclusão do nome de Filipe Martins no inquérito veio após ele fazer declarações sobre um grotesco vídeo com leões e hienas postado no Twitter de Bolsonaro. O ex-assessor também entrou na mira das comissões parlamentares de inquérito das Fake News e da Pandemia.
À época da nomeação de Martins no Planalto, seu perfil no Linkedin informava que ele havia trabalhado na Embaixada dos Estados Unidos em Brasília entre fevereiro de 2015 e julho de 2016 – época do ápice do movimento golpista que depôs a presidenta Dilma Rousseff.
Nesse período, segundo a plataforma, Martins desempenhou diversas funções na representação americana, entre as quais a de ser “responsável pela elaboração de pesquisas, estudos e relatórios sobre a conjuntura política e econômica do Brasil, com ênfase na relação bilateral com os EUA”. Outras tarefas incluíam “auxílio na recepção de autoridades nacionais e internacionais, bem como no planejamento e organização de reuniões”.
Antes de servir ao governo americano, Martins dava expediente na assessoria internacional do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a Corte contra a qual Bolsonaro e seus asseclas viriam a desferir uma série de ataques, com acusações infundadas sobre supostas irregularidades no processo eleitoral. Na minuta golpista encontrada na casa do ex-ministro Anderson Torres, havia a previsão de decretação de “estado de defesa” no TSE, o que abriria caminho para a anulação do resultado das eleições do ano passado.
Martins também atuou em consultorias privadas e deu aulas em cursos preparatórios para as carreiras diplomática e de oficial da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Após o impeachment de Dilma, Martins deixou a embaixada dos EUA e passou a fazer parte do grupo em torno da pré-candidatura presidencial de Jair Bolsonaro. Chegou a assumir a Secretaria de Assuntos Internacionais do PSL, partido pelo qual o capitão reformado se elegeu naquele ano.
Relações com o Trump
Antes das eleições, Martins, ao lado do deputado Eduardo Bolsonaro, desfilava com desenvoltura pelos seletos ambientes da ultra-direita norte-americana.
Em seu twitter, postou fotos posando ao lado dos senadores Ted Cruz e Marco Rubio, de Steve Bannon e do genro e assessor do ex-presidente Donald Trump, Jared Kushner – em outubro de 2022, Bannon, ex-assessor de Trump, foi condenado a quatro meses de prisão e multa por se recusar a atender a intimações do comitê que investiga o ataque golpista ao Capitólio, sede do legislativo dos EUA, ocorrido em 6 de janeiro de 2021.
Bannon foi apresentado a Bolsonaro por Filipe Martins, e o americano passou a assessorar o ex-presidente em seu projeto golpista de se manter no poder. Por sua vez, os republicanos Ted Cruz e Marco Rubio são os políticos que melhor personificam o influente e bilionário lobby armamentista, que viria a encontrar um terreno fértil no Brasil com Bolsonaro na presidência.
Filipe Martins também tem fotos com Trump. Em agosto de 2019, a Casa Branca divulgou imagens do Salão Oval, nas quais o americano aparece reunido com seu então secretário de Estado, Mike Pompeu, com Martins, Ernesto Araújo e Eduardo Bolsonaro.
Como Steve Bannon, Trump também começou a prestar contas à justiça por envolvimento no atentado ao Capitólio, tendo se tornado réu. Segundo o Departamento de Justiça dos EUA, dos mais de mil que foram presos, 632 já foram condenados pela tentativa de golpe de Estado.
Padrinhos
Quando tomou posse como assessor no Palácio do Planalto, Filipe Martins foi efusivamente homenageado por Eduardo Bolsonaro e pelo então chanceler Ernesto Araújo, seus principais padrinhos políticos.
“Realmente o presidente estará muito bem assessorado! Sangue novo nas relações internacionais, nunca se preocupou em aparecer e sempre estudou e trabalhou no sentido correto, honesto e inteligente”, celebrou o filho de Bolsonaro, nas redes socias.
“Ninguém melhor talhado que Filipe G Martins para Assessor Internacional do Planalto. Seu conhecimento, sensibilidade, determinação, visão estratégica e patriotismo raramente se reúnem nesse grau na mesma pessoa. Um privilégio trabalhar c/ ele na política externa do PR Bolsonaro!”, festejou Araújo.
Na primeira semana do governo Bolsonaro, durante a qual Filipe Martins foi nomeado no Planalto, o então assessor já estava cumprindo uma missão internacional altamente relevante para o governo que se iniciava. Ele viajou ao Peru para participar de uma reunião do Grupo de Lima – bloco de países latino-americanos criado para monitorar a crise na Venezuela, à época sintonizado com os interesses de Washington contra o governo de Nicolás Maduro.
Durante o encontro, Ernesto Araújo afirmou que Bolsonaro “não exclui a possibilidade” da instalação de uma base militar americana no Brasil. Segundo o então chanceler, caso isso acontecesse, faria parte de uma “agenda mais ampla” do país com os Estados Unidos.
Outro compromisso importante de Filipe Martins na nova função ocorreu em julho de 2019. O bolsonarista se reuniu com o chefe do FBI no Brasil, David Brassanini, que estava acompanhado por William Popp, vice-chefe da missão da embaixada dos EUA. Brassanini era o principal supervisor da expansão do FBI no Brasil desde a posse presidencial de Bolsonaro e a nomeação de Sergio Moro como ministro da Justiça e Segurança Pública.
Segundo reportagem da Agência Pública, baseada em documentos oficiais, Sergio Moro e o então diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, assinaram acordos com o FBI, ampliando a influência norte-americana em diferentes áreas de combate ao crime no Brasil, incluindo a presença dos agentes estrangeiros em um centro de inteligência na fronteira, investigações sobre corrupção e acesso a dados biométricos brasileiros.
Voo da covid
Em março de 2020, início da pandemia da covid-19, Filipe Martins acompanhou Jair Bolsonaro na primeira visita oficial aos EUA, para um encontro com Donald Trump. Naquela ocasião, foi iniciado um processo de aproximação entre os dois presidentes, baseado mais em princípios ideológicos comuns do que nos interesses estratégicos dos respectivos países. No Brasil, a missão foi batizada de “voo da covid”, pois mais de 20 integrantes da comitiva retornaram ao país com diagnóstico positivo para a doença, entre eles o próprio ex- assessor e Mauro Cid.
Um outro episódio aconteceu em agosto de 2020, quando Eduardo Bolsonaro foi acusado pelo ex-deputado estadual de São Paulo Douglas Garcia, um ex-aliado, de ter entregue à embaixada americana em Brasília, onde Filipe Martins havia trabalhado, um dossiê sobre militantes antifascistas no Brasil.
O material de 56 laudas trazia dados pessoais, inclusive fotografias, de quase mil pessoas. Eduardo Bolsonaro negou à Justiça que tivesse participado da elaboração e da divulgação do dossiê, mas admitiu que o encaminhou para autoridades.
Apesar de uma forte atuação no aparelho bolsonarista, Filipe Martins, com um perfil discreto, só ficou nacionalmente conhecido em 24 de março de 2021, quando foi flagrado por câmeras de segurança fazendo um gesto que pode ser associado a supremacistas brancos durante uma sessão no Senado. Na ocasião, Ernesto Araújo falava sobre a atuação do Itamaraty em relação à aquisição de vacinas contra a covid.
O Ministério Público Federal (MPF) no Distrito Federal denunciou Martins pelos gestos racistas. Os procuradores, que se baseiam em informações prestadas pela polícia legislativa do Senado, afirmaram que ele “agiu de forma intencional e tinha consciência do conteúdo, do significado e da ilicitude do seu gesto”.
No entanto, o juiz Marcus Vinicius Reis Bastos, da Justiça Federal do DF, o absolveu da acusação, com o argumento de “não haver um único elemento que indique tal crime, senão a própria narrativa da autoridade policial e do Ministério Público Federal, que, conquanto mereçam respeito, não possuem força probatória em si”.
CPMI do Golpe
Na quinta-feira (20), as revelações de Mauro Cid sobre o envolvimento de Filipe Martins com a escalada antidemocrática repercutiram entre os parlamentares da CPMI do Golpe. Durante a sessão, estava presente o terrorista Wellington Macedo de Souza, ex-assessor da senadora Damares Alves quando ela era ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos de Bolsonaro.
Wellington foi preso nesta semana, no Paraguai, acusado de participar da tentativa de explodir um caminhão-tanque nos arredores do aeroporto de Brasília em 24 de dezembro do ano passado, véspera de natal. Porém, amparado por um habeas corpus do STF, o golpista se manteve calado na CPMI.
O deputado federal Rogério Correia (PT-MG) afirmou, durante a sessão, que as revelações do tenente-coronel reforçam ainda mais os já robustos indícios da participação de Bolsonaro na tentativa de golpe de Estado.
“Isso não é, como se diz, narrativa. São fatos concretos que aconteceram e que nós viemos provando. Então, esse procedimento de golpe está absolutamente claro nessa questão que nós aqui levantamos. Mas tem mais: quem é que levou essa proposta de golpe, ou a minuta do golpe, ou o passo a passo do golpe? Filipe Martins, assessor de Bolsonaro, aquele que virou réu por racismo após o gesto supremacista que ele fez aqui no Senado. Esse que levou a Bolsonaro, segundo Mauro Cid, a minuta do golpe”, afirmou o parlamentar.
A senadora Soraya Thronicke, por sua vez, anunciou que apresentará requerimento de convocação de Filipe Martins para depor na CPMI. Porém, o bolsonarista tem paradeiro desconhecido e mantém silêncio nas redes sociais.
Após a derrota de Bolsonaro nas eleições, Martins continuou como assessor até o final do governo. Porém, desde de janeiro ele evita dizer onde mora e trabalha, até mesmo para outros bolsonaristas.
Diferentemente de outros aliados do ex-presidente que ganharam cargos em gabinetes no Congresso ou na estrutura de governos estaduais, Martins não foi nomeado para nenhum cargo público.
Nas redes sociais, a última postagem do ex-assessor no Twitter, onde ele opinava com frequência sobre temas nacionais e internacionais, é de 30 de outubro, dia do segundo turno das eleições presidenciais. O mesmo silêncio se dá no Facebook e no Instagram.
Da Redação do PT