PF conclui que Bolsonaro comandava desvio e venda de joias

“Selva”, uma expressão comum entre militares, equivalente a “ok” ou “tudo bem”, era usada pelo capitão Jair Bolsonaro no comando da quadrilha que desviou e vendeu joias sauditas presenteadas ao Estado brasileiro durante sua presidência.

“Selva”, escreveu Bolsonaro, em 4 de fevereiro do ano passado, em troca de mensagens com o ex-ajudante de ordens Mauro Cid, após o tenente-coronel enviar um link com a disponibilização de um kit Chopard – composto de caneta, relógio da marca Rolex, anel, abotoaduras e um rosário árabe – em um leilão nos Estados Unidos.

Foi a partir dessa resposta de Bolsonaro a Mauro Cid que a Polícia Federal obteve a certeza de que o ex-presidente tinha conhecimento do esquema de venda ilegal de joias, avaliadas em R$ 6,8 milhões.

A PF também encontrou no celular do ex-presidente registros de navegação que mostram que ele, de fato, abriu o link do leilão. Para os investigadores, isso demonstra que Bolsonaro tinha ordenado a venda do kit nos Estados Unidos.

Além disso, nos prints das conversas entre Bolsonaro e outros integrantes da quadrilha, anexados ao inquérito, chama a atenção o fato de o ex-presidente ter apagado várias mensagens, uma cautela comum a quem quer eliminar vestígios de crimes.

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Indiciamentos

Na semana passada, Bolsonaro foi indiciado pelos crimes de associação criminosa (com previsão de pena de reclusão de 1 a 3 anos), lavagem de dinheiro (3 a 10 anos) e peculato/apropriação de bem público (2 a 12 anos).

Além de Bolsonaro, outras 11 pessoas também foram indiciadas pela PF.  Mauro Cid foi apontado como suspeito dos três crimes. Fabio Wajngarten e Frederick Wassef, advogados de Bolsonaro, foram citados por lavagem e associação criminosa, assim como o general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid, pai de Mauro Cid, que ajudou na venda das joias, e o ex-assessor de Bolsonaro Osmar Crivelatti.

Os demais indiciados pela PF foram Bento Costa Lima Leite de Albuquerque Júnior, Marcelo da Silva Silveira e Marcos André dos Santos Soeira (apropriação e associação criminosa), Julio Cesar Vieira Gomes (pelos três crimes e por advocacia administrativa perante a administração fazendária) e o militar José Roberto Bueno Junior (pelos três crimes).

Somente Marcelo Costa Câmara, ex-assessor de Bolsonaro, foi indiciado por um crime (lavagem de dinheiro).

A PF enviou ao Supremo Tribunal Federal (STF) o relatório que fundamenta os indiciamentos.

Na segunda-feira (8), o ministro Alexandre de Moraes, do STF, retirou o sigilo do inquérito sobre as joias, incluindo o relatório. Também deu 15 dias de prazo para a Procuradoria-Geral da República (PGR) decidir se apresenta denúncia, pede o arquivamento do caso ou solicita novas diligências. O prazo termina em 23 de julho.

Se a denúncia contra Bolsonaro for oferecida e tiver a aceitação do STF, ele passará da condição de investigado para a de réu.

“Bolsonaro é um corrupto!”

A presidenta do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann (PR), considerou “gravíssimo” o conteúdo do relatório da PF.

“É gravíssimo o relatório da Polícia Federal que indiciou Bolsonaro no caso das joias. As denúncias vão desde organização criminosa para obter vantagens políticas e patrimoniais, ataques virtuais a opositores, as instituições, até as mentiras que ele contou sobre as vacinas de Covid-19. Depois da tentativa frustrada de golpe de Estado, Bolsonaro fugiu para os Estados Unidos e transferiu quase todo seu recurso financeiro para um banco no exterior, mas bancou as despesas dele e da família com dinheiro em espécie, por meio da venda das joias desviadas”, afirmou a parlamentar, na rede social X.

“Chega a ser inacreditável a maneira como ele corrompeu a Presidência da República, parte dos militares de alta patente e enganou os brasileiros. Nunca foi sobre Deus, pátria ou família. Sempre foi por dinheiro. Isso precisa ser denunciado: Bolsonaro, o arauto da modalidade, é um corrupto!”, concluiu.

 

Modus Operandi

O relatório traz os detalhes do modus operandi da quadrilha. Durante as investigações, a PF apurou, por exemplo, que, dos cerca de 9 mil itens presenteados ao então presidente Bolsonaro, apenas 55 foram classificados como acervo público. Essa informação foi prestada durante depoimento da ex-coordenadora do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH), Marjorie de Freitas Guedes.

Para a PF, conforme o relatório encaminhado ao STF, isso demonstra uma “atuação desgarrada do interesse público” no GADH do Palácio do Planalto, comandado, à época, por Marcelo da Silva Vieira.

Ainda conforme o documento, a atuação “dolosa” de Vieira “foi elemento preponderante” para permitir que o então presidente Jair Bolsonaro “obtivesse êxito na primeira etapa da empreitada criminosa, descortinada na presente investigação, consistente no desvio de bens de alto valor patrimonial do acervo público brasileiro, presentados por autoridade estrangeira”.

“Esses bens foram posteriormente vendidos ‘de forma escamoteada’, e os recursos, em espécie, reintegrados, com aparência lícita, ao patrimônio do ex-presidente”, diz o relatório policial.

O documento acrescenta que a estrutura do GADH foi usada para “legalizar” os bens recebidos como presente e incorporados ao acervo privado de Bolsonaro. Além disso, uma conversa por WhatsApp obtida na investigação mostra que Vieira usava como critério, para incorporação de bens recebidos como presente ao patrimônio público, o desejo do então presidente.

Enriquecimento ilícito

Em 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu um acórdão definindo que todos os presentes recebidos nas audiências com chefes de Estado e de Governo, por ocasião das visitas oficiais ou viagens de Estado ao exterior, ou das visitas oficiais ou viagens de Estado de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil seriam incorporados ao acervo público brasileiro, excetuando-se os itens de natureza personalíssima ou de consumo direto do presidente da República.

Mas essa determinação não foi cumprida durante o governo Bolsonaro. Segundo o relatório da PF, “o GADH atribuiu presentes de altíssimo valor, dados por autoridades estrangeiras, ao acervo privado do presidente da República, adotando uma interpretação que contraria os princípios que regem a Administração Pública e a teleologia do acórdão proferido pelo TCU”.

Os investigadores avaliam que essa interpretação, “além de chancelar um enriquecimento inadmissível pelo Presidente da República, pelo simples fato de exercer uma função pública, proporciona a possibilidade de cooptação do chefe de Estado brasileiro, por nações estrangeiras, mediante o recebimento de bens de vultosos valores”.

Foi por conta desse risco de cooptação que chamaram a atenção dos investigadores as 150 viagens feitas por Bolsonaro e integrantes de sua equipe à Arábia Saudita ao longo dos quatro anos do governo passado.

A alta frequência dessas viagens também acendeu o alerta no Congresso, onde o  senador Humberto Costa (PT-PE) ingressou com um pedido de investigação no Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), tendo como alvo um terceiro pacote de jóias que Bolsonaro recebeu do governo da Arábia Saudita.

“Solicita-se que esse Digno Ministério Público avalie apurar as reais razões de tão constantes deslocamentos oficiais, e se, ao final de cada uma dessas visitas, a comitiva ou o ex-presidente receberam objetos valiosos, e se assim for, a que título foram recebidos”, solicitou o senador, em março do ano passado.

Presentes também dos Emirados Árabes

Além das joias da Arábia Saudita, cinco presentes dos Emirados Árabes Unidos, recebidos por Bolsonaro, também entraram na mira da Polícia Federal. Contrariando a determinação do TCU, foram incorporados ao acervo privado do ex-presidente um relógio de mesa cravejado de diamantes, esmeraldas e rubis; três esculturas, uma delas feita de ouro, prata e diamantes; e um incensário de madeira dourada. O valor de cada uma delas não foi registrado pela Presidência.

As constantes viagens ao mundo árabe e o grande volume de presentes de alto valor lançaram dúvidas sobre a lisura da venda da refinaria Landulpho Alves (RLAM), situada na Bahia, pela Petrobras ao fundo Mubadala, dos Emirados Árabes Unidos. Uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) apontou fragilidades no processo e concluiu que a refinaria foi vendida bem abaixo do preço de mercado. O negócio foi fechado em novembro de 2021, no valor de US$ 1,65 bilhão.

A CGU assinalou que a operação “pode ter gerado impacto tanto no valor da avaliação da RLAM, quanto na aversão ao risco por parte dos compradores, tendo como consequência redução do valor esperado para alienação”.

Em janeiro deste ano, a Petrobras abriu uma investigação para avaliar a venda da refinaria.

Da Redação PT

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