O efeito de terceira-pessoa ou ‘o inferno são os outros’

Publicado originalmente em Carta Capital, por Camilo Aggio

 

As pessoas acreditam que as informações falsas (ou falsas notícias) são uma ameaça por julgar que as outras pessoas são ingênuas. Embora já tenha tratado do tema aqui em mais de uma ocasião, essa frase não é minha. A rigor, nem de uma mera frase ou opinião se trata, mas de uma constatação empírica.

Os pesquisadores Sacha Altay, da Universidade de Oxford, e Alberto Acerbi, da Universidade de Brunel em Londres, acabaram de publicar no prestigiado periódico científico New Media & Society os resultados de uma pesquisa realizada no Reino Unido e replicada nos Estados Unidos. O intuito foi o de investigar que fatores psicológicos estariam associados à percepção do perigo exercido pela dita má-informação (misinformation) e como essa condição contribui para a popularidade de narrativas alarmistas a respeito.

O que a dupla de pesquisadores constata no estudo é a prevalência de um velho conhecido no campo das teorias da comunicação, mais especificamente nos estudos dos efeitos dos media (media effects): o efeito de terceira-pessoa ou third-person effect. Em outras palavras, os pesquisadores descobriram que as pessoas tendem a se preocupar com a desinformação e a se engajarem no compartilhamento de narrativas alarmistas a respeito não porque, por exemplo, cultivam um atitude negativa e condenatória dos media digitais, mas porque pressupõem que “os outros” são vulneráveis a ela.

É muito pouco provável que algum leitor ou leitora que passe por essas linhas não tenha, algum dia, se preocupado ou, efetivamente, condenado algum tipo de conteúdo mediático – seja uma novela, um material pornográfico, um filme, uma história em quadrinhos, um telejornal, alguma notícia ou discurso político, um dispositivo tecnológico como um celular, televisão ou videogame – não por conta do conteúdo em si, mas em razão do que efeito que ele ou ela presume que tal conteúdo em si, mas em razão do que efeito que ele ou ela presume que tal conteúdo exercerá sobre os outros, ao contrário do efeito que exerceria sobre si.

O conservador religioso condenou Brokeback Mountain não porque ele acreditou que aquele belo filme o converteria em homossexual, mas sim em como os outros seriam induzidos à homossexualidade por conta daquele enredo. O militante de esquerda radical pede o fim do Jornal Nacional e de todo o jornalismo da Globo ou da grande imprensa não porque ele acredita que aqueles conteúdos manipularão sua consciência política, mas a consciência política dos outros.

O fenômeno do efeito de terceira-pessoa foi descoberto pelo sociólogo e pesquisador W. Philip Davison em 1982 e vem sendo replicado em estudos empíricos desde então. Pelo acúmulo de evidências coletadas mundo afora nesses mais de 40 anos de pesquisa, em diferentes contextos culturais e nacionais, temos a constatação de um fenômeno mundial: as pessoas tendem a ser muito mais afetadas pela estimativa que fazem dos efeitos de um conteúdo  mediático sobre as outras pessoas do que pelo conteúdo em si.

Em outras palavras, sempre tendemos a achar que “os outros”, essa categoria abstrata e sempre engatilhada para ser disparada por nossos juízos sociais, são muito mais afetados por conteúdos que julgamos negativos, nocivos e socialmente indesejados do que nós mesmos. E qual a implicação prática disso? Basicamente, é o efeito de terceira-pessoa que costuma sustentar disposições e medidas de censura contra certos conteúdos. A premissa é a de que o outro é vulnerável, manipulável, logo, deve ser protegido. Nós nunca precisamos de proteção nessa equação, afinal, somos os esclarecidos, os detentores do poder de discernimento e crítica que consegue resistir às investidas dos males mediáticos: a primeira-pessoa.

Um dos fatos mais curiosos a respeito dessas pesquisas é a demonstração de que todo mundo tende a pensar assim. Ou seja, aquele outro que julgamos vulnerável também tende a julgar os seus “outros” da mesma forma. E assim entramos numa espiral generalizada de fantasias ou simplificações de problemas e falsas soluções para questões complexas.

Os conteúdos falsos que circulam pelas redes digitais são um problema sério. Disso não podemos ter dúvidas. Mas pior do que eles são os diagnósticos que os simplificam. Projetos e medidas voltados ao combate à desinformação não podem ser concebidos e postos em prática com base em premissas falsas, tal como a de que os indivíduos que se alimentam e regurgitam informações falsas e falsas notícias nas redes digitais são, ao contrário de nós, vulneráveis e manipuláveis.

Essas pessoas não aderem a esses conteúdos e os passam adiante por falta de discernimento, competências hermenêuticas ou educação formal. A desinformação não será combatida por quem acha que tem o que ensinar a quem julga incapaz de interpretar e discernir entre o falso e o verdadeiro. A educação mediática passa longe de ser uma solução na medida em que parte de uma falsa premissa amplamente documenta pelas evidências das pesquisas dedicadas ao efeito de terceira-pessoa.

Problemas complexos exigem soluções complexas. Presumir que nós somos os esclarecidos e os outros são os vulneráveis que precisam do colo de nosso paternalismo é um erro que tem alimentado atitudes que tendem a gerar mais problemas do que soluções.

É preciso, inclusive, como salientam a dupla de pesquisadores mencionados acima, que as redações jornalísticas atentem para o problema de enquadramentos alarmistas sobre a desinformação com base em premissas do tipo. Os efeitos podem ser contrários ao propósito, como o aumento da desconfiança e o cinismo face a conteúdos objetivos, factuais e apurados por parte de diferentes públicos.

Em breve teremos um projeto de regulação das plataformas digitais. Já era em tempo. É fundamental que evitemos as ciladas do efeito de terceira-pessoa, ou seja, da subestimação do outro, para combater esse problema.

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