A Cara do Golpe: As narrativas que levaram ao 8 de janeiro

Como mostrado nos capítulos anteriores, os golpistas que atacaram as sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro estavam convencidos de que a eleição de 2022 foi fraudada pelo próprio Judiciário e, ainda mais absurdo, que seria possível um golpe militar sem ferir a Constituição.

Mas como tantos brasileiros passaram a acreditar nesse delírio que não encontra nenhuma relação com a realidade? Hoje, quando se analisa o discurso construído pela extrema direita nos últimos anos, percebe-se que o 8 de Janeiro foi resultado de quatro narrativas mentirosas.

A primeira delas é a da Justiça como inimiga. Os ataques ao Poder Judiciário começaram antes mesmo de Jair Bolsonaro ser eleito. Em outubro de 2018, veio a público um vídeo no qual Eduardo Bolsonaro dizia não achar improvável que o Supremo tentasse impedir seu pai de tomar posse. Em seguida, ele dizia: “Se você quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe, cara, manda um soldado e um cabo”.

O próprio Jair Bolsonaro começou sua ofensiva antes de ser eleito. E, depois de se tornar presidente, não parou de criar conflitos e tensões com o STF e outros tribunais superiores. Em 2019, primeiro ano de mandato, disse várias vezes que o Supremo estava “legislando” e “errando demais”.

Ao mesmo tempo, bolsonaristas construíram uma imagem do STF como um inimigo das pautas conservadoras, divulgando amplamente decisões como a do direito de interrupção da gestação em caso de feto anencéfalo e a criminalização da homofobia e da transfobia.

As críticas viraram ataques. Influenciadores bolsonaristas passaram a pedir a prisão de ministros do STF e chegaram a realizar protesto em que fogos de artifício foram lançados sobre o tribunal. Ao reagir e passar a investigar atos antidemocráticos como esses, o Supremo passou a ser descrito, então, como um poder “de esquerda”, que busca censurar e perseguir a direita.

Suspeitas sobre as eleições

Paralelamente à campanha anti-Judiciário, Bolsonaro e seus cúmplices sempre tentaram desacreditar o processo eleitoral. O ex-presidente chegou a dizer, ainda em 2018, que só não venceria as eleições se houvesse fraude.

Em 9 de março de 2021, ele deixou de lado as insinuações e passou a fazer acusações. Naquele dia, durante viagem aos Estados Unidos, disse ter provas de que fraudes o impediram de vencer já no primeiro turno em 2018. Embora as provas nunca tenham sido apresentadas, ele repetiu essa história diversas vezes.

Ataque semelhante foi feito às urnas eletrônicas. Após declarações esporádicas sobre a falta de confiabilidade dos equipamentos, Bolsonaro e sua tropa passaram a defender o voto impresso como única forma de garantir eleições limpas. A ponto de, em agosto de 2021, tentarem aprovar uma emenda à Constituição implementando o voto impresso.

Mal-sucedidos nessa tentativa, os bolsonaristas passaram a reforçar o discurso de que a derrota de Bolsonaro em 2022 só ocorreria com fraudes. Ele chegou a convocar embaixadores para dizer que as urnas e o TSE não seriam confiáveis e repetiu, por diversas vezes, que só aceitaria o resultado de eleições confiáveis. Isso era o mesmo que se recusar a aceitar a derrota, já que, na narrativa criada, apenas o voto em papel seria confiável.

Essa escalada chegou ao limite do golpismo em 7 de setembro de 2022, quando Jair Bolsonaro sequestrou uma festa cívica nacional para sua agenda antidemocrática. Reuniu seus apoiadores tanto na Avenida Paulista, em São Paulo, quando na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. E chegou a dizer que poderia desrespeitar decisões da Corte.

O clima de animosidade e instabilidade era tão grande que muitos de seus apoiadores lamentaram o fato de Bolsonaro não ter dado a ordem para que o STF fosse invadido aquele dia.

A crise e o “poder moderador”

As versões da Justiça como inimiga e da desconfiança a respeito do processo eleitoral ajudaram a alimentar outra importante narrativa da extrema direita: a da crise entre os poderes.

Crise, é importante ressaltar, alimentada pelo próprio Bolsonaro. O ex-capitão não perdeu uma só chance de criar conflitos entre as instituições. Na pandemia, por exemplo, abriu guerra contra o Supremo, o Congresso Nacional e os governadores, simplesmente porque eles tentavam adotar medidas para proteger a população da Covid-19.

No emaranhado de desinformação, a solução para a crise apresentada aos seguidores de Bolsonaro era a das Forças Armadas como poder moderador. Essa foi a quarta narrativa que alimentou o 8 de Janeiro após ser propagada por anos. Para se ter ideia, Ives Gandra Martins, o jurista chamado para falar na infame audiência no Senado de 30 de novembro de 2022, vinha publicando artigos sobre o tema desde 2016.

A tese “inovadora” de Martins nesses textos é a de que o artigo 142 da Constituição permite que qualquer um dos Três Poderes, caso se sinta “atropelado por outro”, peça que as Forças Armadas “ajam como poder moderador”, em caso de “conflito entre os Poderes”.

Embora fortemente contestada por especialistas em direito, essa tese se tornou verdade no ecossistema de desinformação bolsonarista. E, a ela, somou-se a lembrança de experiências do uso das Forças Armadas para “conter crises” — Garantia da Lei e da Ordem (GLO) adotada em Brasília, após protestos em maio de 2017; e a intervenção militar na segurança do Rio de Janeiro, no ano seguinte, ambos no governo de Michel Temer.

Assim, o ecossistema de desinformação conseguiu convencer milhares de brasileiros que, no fim, um plano ardiloso do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) impediu a realização de eleições confiáveis para eleger Lula. Também os convenceu de que as Forças Armadas poderiam dar um golpe sem ferir a Constituição. E ainda que, ao provocarem uma grave crise em 8 de janeiro, a decretação da GLO seria inevitável, o que ajudaria ainda mais a intervenção militar.

Ora, quem difundiu essa narrativa foi, claramente, Jair Bolsonaro e seus cúmplices. Logo, é evidente que são eles os responsáveis pelo que ocorreu. E que Jair Bolsonaro é, sim, o capitão do golpe. Impossível negar.

Da Redação do PT

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