“Quando falta o ar”, ao disputar indicação para melhor documentário, levou ao mundo o SUS e a luta das mulheres da saúde contra o negacionismo. “Argentina 1985” retrata por que a luta pela memória e a verdade vale a pena.
A cerimômia de entrega do Oscar 2023, na noite deste domingo (12), começou no ano passado e teve pelo menos dois vencedores de “véspera”. Um deles, o brasileiro Quando Falta o Ar, indicado pelo país para a disputa do Oscar de melhor documentário, fez história apesar de ter ficado de fora na lista final. Por muito tempo, levantou nas redes sociais a hashtag #SUSnoOscar.
O outro é o longa Argentina 1985, que na noite derradeira esteve entre os cinco indicados de melhor filme estrangeiro. E, dessa forma, já com a missão de levar ao mundo e às novas gerações a história da punição, sem anistia, dos protagonistas de uma das ditaduras mais sangrentas do século 20. “Só por isso já vencemos”, disse um dos inspiradores do filme, o promotor Luis Moreno Ocampo.
Ocampo (vivido no filme por Peter Lanzani) foi auxiliar do procurador Julio Strassera (Ricardo Darín) no processo que levou o ditador Jorge Videla à prisão. Era 1985, e a Argentina em seus primeiros dois anos de restauração democrática já punha o general-presidente no banco dos réus. Jorge Rafael Videla foi declarado culpado pelo assassinato e desaparecimento de milhares de cidadãos em seu governo (1976-1981). A sentença: prisão perpétua, inelegibilidade perpétua e perda perpétua da patente militar.
A história na pele
Em entrevista recente ao Roda Viva, da TV Cultura, Luis Moreno Ocampo disse que Argentina 1985 foi “a cereja do bolo” de um processo que mudou seu país. Por intermédio do longa dirigido por Santiago Mitre, não apenas o mundo tomou contato com uma história que não se pode esquecer. Mas sobretudo as novas gerações a sentiram na tela. Jovens como seu próprio filho, que não tiveram contato com a gravidade daquele momento.
O promotor enaltece a importância do cinema ao lembrar que, durante o processo – resultado do trabalho da Comissão da Verdade –, assistiu a A História Oficial (1985, vencedor de Oscar de filme estrangeiro no ano seguinte). E disse que pela primeira vez chorou muito, mesmo não vendo no filme as cenas sanguinárias que vieram à sua mente durante o garimpo de testemunhos e provas contra Videla. “É com esse poder que o cinema atravessa gerações e cruza fronteiras. Ganhando ou não o Oscar, o filme cumpriu o papel de levar ao mundo essa mensagem. E isso é tudo que um filme pode fazer: abrir um diálogo diferente.”
Além de A História Oficial, o filme O Segredo de Seus Olhos (2009, de Juan José Campanella) também levou o Oscar de filme estrangeiro para a Argentina.
Perguntado se o Brasil deveria retomar a investigação dos crimes da ditadura, Ocampo foi categórico. A prioridade do Brasil, segundo ele, deve ser a investigação dos atos terroristas de 8 de janeiro. É uma ação emergencial porque ainda está em movimento, ele explica, acentuando que essa tentativa de golpe ainda não acabou. “E a defesa da democracia no Brasil interessa a toda a América Latina.” Não à toa, a hashtag #SemAnistia – recado crítico à lei brasileira de 1979 – passou a ser disseminada em nome da punição aos terroristas do 8 de janeiro.
Quando falta o ar
Foi justamente a abertura desse diálogo diferente um dos grandes feitos do documentário brasileiro Quando Falta o Ar (2021). O filme de Ana e Helena Petta foi o grande vencedor do Festival É Tudo Verdade do ano passado. Desse modo, se credenciou para ser o indicado do Brasil para a lista dos documentários de longa-metragem a concorrer a esta edição do Oscar.
Diferentemente de Argentina 1985, Quando Falta o Ar não acabou entre os cinco indicados para a a final. Mas nem por isso deixou de ser um vitorioso, por levar ao mundo, sobretudo aos Estados Unidos, no final do ano, a história do enfrentamento do Brasil à pandemia da covid-19. O documentário entrou em cartaz esta semana nos cinemas.
Uma história do Sistema Único de Saúde (SUS), que era ele próprio candidato a morrer caso o governo anterior tivesse prevalecido na eleição passada. Um enredo protagonizado essencialmente por profissionais de saúde, que expõe façanhas que não podem se alcançar apenas pelo minguado salário do fim do mês. Uma história, além de tudo, de mulheres, diga-se neste mês de março, que são a grande maioria nessa carreira heroica.
O país todo já sabe que grande parte de seus 37 milhões de contágios e 700 mil mortes pela covid-19 poderia ter sido evitada. Especialmente se não estivesse no poder um governo negacionista e que responderá no Tribunal Penal Internacional por genocídio. Mas ao ver Quando Falta o Ar, o Brasil, e, graças ao cinema, muita gente no mundo, constatará o quanto a tragédia poderia ter sido ainda pior.
Frente de batalha
No 8 de Março dedicado às lutas das mulheres, equipe e atores do filme se encontraram com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto. Lula, ministros e a primeira-dama, Janja da Silva, estiveram por aproximadamente uma hora com a equipe do documentário, médicas e agentes comunitárias.
Uma delas era a indígena Eli Baniwa, que se diplomou médica aos 35 anos, na Universidade Federal do Pará, beneficiada por programas sociais. “Eu vi colegas meus, médicos jovens, se recusando a ir para a frente de batalha. Então, sinto orgulho de estar nesse filme”, afirmou.
“Procuramos registrar de perto o trabalho dessas mulheres”, conta a médica e diretora do filme Helena Petta: “Capturamos os diferentes ritmos no cuidado que elas prestam, que muitas vezes se expressam através do toque, do gesto e do olhar. Queríamos revelar as desigualdades do país e os preconceitos raciais que afetam as diferentes religiões do Brasil”.
Não há dúvida: Ana e Helena Petta conseguiram.
Da Redação do RBA