Em cenário de terra arrasada, mais vulneráveis devem ter prioridade, defendem economistas Esther Dweck e Bruno Moretti
A proposta de Orçamento para 2023 é uma das maiores expressões da desconstrução institucional deixada pelo governo Jair Bolsonaro (PL). Não é apenas o auxílio social que não dispõe de dotação suficiente para garantir os R$ 600 aos mais pobres. Diversas políticas contam com previsões ínfimas de recursos para o ano que vem.
Os serviços do Sistema Único de Assistência Social, essenciais à execução do Bolsa Família, contam com R$ 48 milhões. Para a construção de escolas de educação infantil, há R$ 2,5 milhões previstos. Ações estas que necessitam de recursos de mais de R$ 1 bilhão. A correção dos valores do Programa Nacional de Alimentação Escolar foi vetada na Lei de Diretrizes Orçamentárias, apesar da elevada inflação de alimentos e dos cinco anos sem reajuste.
Na saúde, mesmo com o aumento recente dos casos de Covid, há queda nominal de orçamento entre 2022 e 2023, com cortes no Farmácia Popular, na provisão de médicos da atenção primária, na saúde indígena e no programa de residência.
Os investimentos públicos estão no menor patamar da série histórica em termos reais, de R$ 22 bilhões (0,2% do PIB). O Fundo de Arrendamento Residencial, para viabilizar o acesso à habitação popular, tem apenas R$ 34 milhões e nem sequer permite manter as poucas obras em andamento. Mais de R$ 4 bilhões do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico foram colocados em reserva de contingência.
Do ponto de vista macroeconômico, a redução de despesas com elevados efeitos multiplicadores sobre a renda e indutoras do aumento da capacidade produtiva e tecnológica do país reforça a expectativa de estagnação do Produto Interno Bruto per capita em 2023. O mercado estima crescimento de apenas 0,7% para o PIB no ano que vem.
É nesse contexto que a equipe de transição do governo eleito, em parceria com membros do Legislativo, apresentou a “PEC do Bolsa Família”, visando o consenso político.
A proposta retira do teto de gastos a transferência de renda às famílias vulneráveis, cujo orçamento deve ficar entre R$ 160 bilhões e R$ 175 bilhões em 2023. Assim, é possível garantir a continuidade do valor atual do benefício e um acréscimo para famílias com crianças de até seis anos. Ao mesmo tempo, o espaço de R$ 105 bilhões que será criado dentro do teto permitirá recompor gastos sociais e investimentos necessários à recuperação econômica e à garantia da prestação de serviços demandados pela população.
Essa medida é um pacto de reconstrução nacional conferindo prioridade aos mais vulneráveis, tanto por meio do Bolsa Família quanto pela recomposição dos gastos com programas estratégicos para a retomada do crescimento inclusivo e a prestação de serviços públicos essenciais.
Do ponto de vista fiscal, convém lembrar que um acréscimo de R$ 150 bilhões ao Orçamento manteria a despesa primária estável em relação a 2022, no patamar de 19% do PIB. Ademais, neste ano, somando-se o espaço no Orçamento aberto pela PEC dos Precatórios e os créditos extraordinários já editados, houve um aumento do gasto primário de R$ 170 bilhões em relação ao teto, nos termos anteriores às mudanças efetuadas. Logo, não há um acréscimo substantivo da despesa, tampouco uma flexibilização do teto superior à praticada em 2022.
Entre 2019 e 2022, as sucessivas flexibilizações do teto, particularmente aquelas praticadas em contexto eleitoral, agregaram incertezas ao cenário econômico. A combinação de um arcabouço fiscal rígido, sem precedente mundial, com mudanças seletivas não ancora expectativas nem permite a realização de despesas necessárias à mitigação da crise econômica e social —a não ser por meio da suspensão das regras.
A reconstrução do cenário de terra arrasada tem de iniciar pela prioridade aos mais vulneráveis, nos termos propostos pela PEC. Entretanto, a PEC também deve sinalizar as diretrizes para a adoção de novo arcabouço fiscal, conjugando financiamento de gastos sociais, estímulo aos investimentos públicos, suavização de flutuações econômicas e sustentabilidade fiscal, de modo a equilibrar responsabilidade social e fiscal e modernizar as regras fiscais brasileiras.
Esther Dweck
Professora do Instituto de Economia da UFRJ, é membro da coordenação do Grupo de Trabalho de Planejamento, Orçamento e Gestão do Gabinete de Transição Governamental; ex-secretária de Orçamento Federal (2015-16, governo Dilma)
Bruno Moretti
Economista e assessor legislativo